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Os olhares falam as palavras que a boca não pronuncia, talvez esse seja afinal o nosso sentido mais apurado.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Nunca me digas adeus

Queria colo enquanto esperava que o semáforo ficasse verde e, enquanto o sol me aquecia o rosto, lembrei-me dos tantos anos em que me apanhaste e da saudade daquele sentimento de segurança que era ter-te atrás, onde quer que fosse.
Naquela fracção de segundos, revivi os teus chegar a casa, a forma como me olhavas e como eu inclinava a cabeça sempre que sentia as tuas mãos - que ainda hoje, conheço como ninguém.
Senti-me no sofá da nossa casa, era lá que muitas vezes em silêncio analisavas o meu mexer no cabelo, a mão que suportava um queixo pensativo, a concentração absorvente e o olhar esfíngico - tão meu como teu.
O som dos outros carros ficou longe, deu lugar a tudo aquilo que te segredei e que em circunstância alguma, contaste sem ser aos teus botões.
Fazias permanentemente a coisa certa; e foi assim que cresci, no meio de um carácter que julgo não haver igual.
Herdei-te quase tudo. Os lenços de bolso, os teus relógios - uma paixão comum -, a carteira que nunca mandei fora, os papéis rasurados.
O sol continuava a fazer-se sentir e quando dei por mim, percebi porque é que não gosto de comprar sapatos. Eras tu que os compravas, com ou sem mim, eras tu quem sabia se me estavam apertados ou não - para mim um número acima ou abaixo parecia sempre bom.
Continuo parada neste semáforo e sem saber porquê, tudo me faz recordar os gestos, as palavras, os momentos, a voz. Talvez seja o destino numa tentativa de me lembrar a forma como estás presente em tudo o que sou - como se em algum dia da minha vida o fosse esquecer.
O semáforo ficou verde. Tenho que ir, mas tu vens comigo.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Quotes

"O truque da filosofia é começar por algo tão simples que ninguém ache digno de nota e terminar por algo tão complexo que ninguém entenda."
Bertrand Russell

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Aprender direito

Era uma miúda quando aprendi a ler notas numa pauta; apresentaram-me as 5 linhas equidistantes, a Clave de Sol, a Clave de Fá e nem a de Dó ficou pelo caminho. Depois vieram as colcheias, os semibreves, as mínimas, as semínimas, o sustenido, o bemol, o bequadro e seguiram-se as pausas.
Ensinaram-me que devia olhar para a guitarra como uma amiga, estabelecer com ela uma relação de criatividade e dar-lhe espaço para que falasse por mim, se a voz adormecesse. Disseram-me que a sua companhia me tornava poliglota, porque os acordes eram entendidos em todas as línguas.
Já era uma mulher quando aprendi que as palavras são como as notas de todas as pautas que li - têm um momento de reprodução - e tal como é necessário ter sensibilidade para dar música, poder de instinto para enquadrar a nota certa na melodia, é urgente aprender que falar a alguém requer sentido de oportunidade.
Ao longo dos anos, desenvolvi a precisão dos compassos com que deveria tocar cada nota, mas esqueci-me de acertar os tempos às palavras. Por isso, já disse amo-te mais tarde do que era suposto e já recuei certezas com medo que fossem só minhas.
Sabes, o bom das palavras é que obedecem ao ditado: antes tarde que nunca; e felizmente, ao contrário das aulas de guitarra, a vida dá lições que demoram uma vida inteira.

Quotes

"The first step towards getting somewhere is to decide that you are not going to stay where you are."
John Pierpont

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A Crónica

"Estou no autocarro a caminho de casa dos meus pais. Até aqui apanhei um taxi, um metro, um comboio, um avião, outro taxi e agora este autocarro. Numa das paragens vejo um filho ser recebido com gritos pela família, o pai a esfregar-lhe a barriga, o irmão a gargalhar e a mãe com os braços muito abertos. Sei imediatamente que ele vem de longe, como eu, de uma distância que não se pode atravessar sempre que se quer, uma distância que nos impede de pertencer à rotina.

Lembro a minha primeira grande despedida, há quase 4 anos. No aeroporto, entre família e amigos, aguentei com um nó na garganta as lágrimas alheias e percebi que a felicidade está directamente ligada ao amor destas pessoas que a vida fez o favor de colocar ao meu lado, pessoas que me amam e ao mesmo tempo compreendem que tenho de ir.

Desde então já vivi muitos reencontros e muitas despedidas, já chorei em aeroportos ao deixar quem não queria ver partir, já fui só abraços e alegria, e já vivi a solidão de chegar a sítios onde ninguém me espera. Enquanto eu transito, estas pessoas aguardam na repetição dos dias que a minha chegada os torne um bocadinho mais cheios.

A caminho, penso no conforto estrutural e inabalável do quotidiano, que a minha ausência não faz colapsar. Um sítio-amor a que posso voltar sempre, e onde sinto que nunca fui embora. Estou constantemente em dívida, de arma em riste contra a ausência, e ainda assim falho, porque não consigo melhor.

Chego pelo mesmo caminho de sempre, de que conheço todas as curvas e cruzamentos. Adivinho o sorriso e o abraço apertado, abraço por todos os abraços que ficaram por dar hoje, esta semana, este mês. Antecipo o cheiro a jantar, o ruído da televisão na sala, os desenhos da toalha na mesa. Sei de cor como será a minha chegada, de tantas vezes que a vivi. Sei-a tão bem que me parece sempre a mesma, uma eterna chegada a uns braços abertos.

A saudade, que só se tem em ausência, é ainda assim um saco que nunca se esvazia, mesmo quando estamos juntos todos os dias, porque são dias contados. Nunca poderei devolver a quem amo os dias que lhes retirei. Posso só tentar que os que partilhamos sejam grandes. Posso só ser mais amor, tentar ser menos falha, e pedir com a humildade da minha pequenez que a vida me permita dar-lhes muito mais."